29 dezembro 2008

Acho que fui infectado*

"Ensaio sobre a Cegueira" (Fernando Meirelles, 2008)

Uma doença não identificada cega a população de uma cidade (mundo?). Esta é a premissa de “Ensaio sobre a Cegueira”, tanto do livro como do filme; ambos um desafio à interpretação dos seus leitores, deixando (muito) espaço aberto a análises sobre a causa, simbolismos, efeitos e cores de uma cegueira que conduz toda uma população ao apocalipse.

Comecemos pelo início: numa cidade sem nome vários habitantes começam a perder a visão, não se trata, no entanto, de uma cegueira normal, é um mal-branco, nunca visto, incurável e indecifrável; incapazes de lidar com o crescente número de cegos, as autoridades competentes tratam de os juntar num mesmo espaço sem qualquer preocupação para com o bem-estar ou saúde a longo-prazo dos seus concidadãos que, também eles, ao fim de algum tempo perdem a sua humanidade e esquecem que o preço a pagar pela dignidade é demasiado elevado.

Alegoria sobre a decadência da moralidade do Homem cujo destino previsível é a miséria colectiva, quando a solidariedade é abolida da conduta do quotidiano, “Ensaio sobre a Cegueira”- o filme- perde muito pouco em relação à obra escrita; além do inevitável problema que qualquer adaptação sofre, de poder desiludir a visão pessoal do leitor sobre o romance, apenas é de realçar como as descrições visuais de Fernando Meirelles são mais contidas que as descrições escritas de José Saramago. A destacar a opção de Meirelles pelo branco como cor dominante, por vezes mesmo a ocupar a tela por inteiro, sem deixar espaço a qualquer outra forma reconhecível, um comentário do realizador ao mundo de 2008, actualizando a estória de 1995, fazendo o publico sentir um pouco da doença-branca de que as personagens sofrem? A destacar ainda o trabalho de caracterização do espaço do manicómio abandonado, onde nada funciona como devia e onde a sujidade se vai acumulando em quantidades cada vez maiores; como ponto negativo a pontuação irónica que a banda sonora por vezes empresta a cenas que, noutro contexto seriam alvo de riso, mas neste filme poderiam adquirir uma carga dramática suplementar, se bem utilizadas.

Visualmente arrebatador, a obra de Fernando Meirelles não fica muito atrás do livro de José Saramago, sendo fidelíssimo ao material de origem sem nunca descurar o facto de ter de transportar uma narrativa pouco simples para uma linguagem completamente diferente. Dando uma vista de olhos pela imprensa internacional, as críticas negativas vão-se acumulando e é verdade que “Ensaio sobre a Cegueira” não é um filme fácil de assimilar, com sequências duras de seguir e imagens complicadas de processar, no entanto, é sempre de assinalar quando um filme, como este, é capaz de despertar processos cognitivos no espectador deixando-lhe espaço para chegar à sua interpretação, sem lhe impôr uma solução única.
* Texto publicado na edição de 25 de Novembro de 2008 do Jornal Universitário A Cabra

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