29 dezembro 2008

Acho que já não estamos na Pixar *


Depois de chegarem a Madagascar no capítulo anterior, Alex o Leão, Marty a Zebra, Glória o Hipopótamo e Melman a Girafa vão agora a África onde descobrem o seu lar ancestral e antepassados não muito distantes.

A guerra entre os estúdios de animação tem um líder destacado e, infelizmente para Madagascar 2, não é a Dreamworks. É verdade que o ogre verde é uma criação deste estúdio dos amigos Spielberg, Katzenberg e Geffen, mas não consegue ainda chegar ao nível de qualidade e apelo que tanto míudos e graúdos sentem com uma obra dos estúdios Pixar. Pode não ser justo referir numa crítica que este filme não é aquele, mas o barómetro de qualidade é indiscutível em todos os campos. Enquanto que a Pixar caminha na direcção do fotorrealismo, em Madagascar 2 a opção é por uma estilização cartoonesca de animais excessivamente antropomorfizados, assim como na maioria das animações da Dreamworks. Se em contos de fadas com gatos de botas e princesas consegue ser adequado, quando há interacção entre humanos e animais num universo que adere às convenções do Real, já começa a ser mais complicado aceitar.

Voltemos ao filme. Ao chegarem a Àfrica todos os quatro protagonistas encontram os seus grupos naturais onde se encaixam perfeitamente, até que a fórmula do capítulo anterior é repetida. Alex e Marty confrontam-se, colocando em causa a sua amizade, até que uma situação-limite os obriga a reatar o relacionamento entre ambos. Se a preocupação com os amigos é uma mensagem importante a passar às crianças, talvez seja importante também não as tratar como se fossem imbecis e investir em narrativas inovadoras e refrescantes (Wall.E). Também a registar o enorme tiro no pé que é manter as personagens mais carismáticas, os pinguins, de fora do ecrã durante a maior parte do tempo, os melhores momentos são protagonizados por estas aves impossibilitadas de voar, desde uma emboscada a turistas na savana a negociações sindicais com os trabalhadores manuais do seu novo projecto.
* Texto publicado na edição de 9 de Dezembro do Jornal Universitário A Cabra

Edição de Video-Clube*


No inicio de “Boa Noite e Boa Sorte” vemos um discurso de Edward R. Murrow advertindo para uma vigilância ao papel social da televisão, não nos pode isolar do mundo através do entretenimento inconsequente, avisa o jornalista. Estávamos em 1958, mas o paralelismo entre os eventos retratados no filme de George Clooney e a realidade americana do passado muito recente não pára aqui. O ambiente de terror instituído pelas esferas de poder e acusações infundadas lançadas aos mais diversos opositores nos anos '50 é representado pelo Senador Joseph McCarthy e pelo Comité de Actividades Anti-Americanas, sempre pronto a lançar o epíteto de “Comunista” a quem quer que se lhe opussesse. Vidas foram destruídas, carreiras interrompidas, mesmo a indústria do cinema não escapou ao ambiente de paranóia vislumbrado na “Ameaça Vermelha”. Este clima de divisão maniqueísta é realçado pela opção estética do preto e branco, visão do “nós contra eles” a que os fundamentalismos não têm medo de recorrer.


O filme é um exemplo do que o Cinema ainda pode ser quando não tem medo de falar de temas que não apelem apenas à faixa etária mais jovem, mas falemos agora da edição DVD.
Em substituição do tradicional anuncio da Associação Portuguesa de Editores de Videogramas, advertindo contra os malefícios da pirataria digital, somos brindados com três trailers de filmes completamente díspares assim que colocamos o disco no leitor. Estará a Prísvideo a ignorar a luta constante que se deve manter contra as cópias não autorizadas? Não temos forma de saber, mas a inclusão de publicidade a outros lançamentos da editora trás à memória as edições em formato VHS dos clubes de vídeo, que nos informavam de outros filmes disponíveis. O conteúdo dos extras não é animador: o anunciado documentário de produção, apesar de bem conseguido, tem apenas 15 minutos e não há comentários do realizador. Pelo menos não chegamos ao ridículo de anunciar como “Extra” os menus interactivos do dvd...


* Critica dvd publicada na edição de 25 de Novembro do Jornal Universitário A Cabra

Acho que fui infectado*

"Ensaio sobre a Cegueira" (Fernando Meirelles, 2008)

Uma doença não identificada cega a população de uma cidade (mundo?). Esta é a premissa de “Ensaio sobre a Cegueira”, tanto do livro como do filme; ambos um desafio à interpretação dos seus leitores, deixando (muito) espaço aberto a análises sobre a causa, simbolismos, efeitos e cores de uma cegueira que conduz toda uma população ao apocalipse.

Comecemos pelo início: numa cidade sem nome vários habitantes começam a perder a visão, não se trata, no entanto, de uma cegueira normal, é um mal-branco, nunca visto, incurável e indecifrável; incapazes de lidar com o crescente número de cegos, as autoridades competentes tratam de os juntar num mesmo espaço sem qualquer preocupação para com o bem-estar ou saúde a longo-prazo dos seus concidadãos que, também eles, ao fim de algum tempo perdem a sua humanidade e esquecem que o preço a pagar pela dignidade é demasiado elevado.

Alegoria sobre a decadência da moralidade do Homem cujo destino previsível é a miséria colectiva, quando a solidariedade é abolida da conduta do quotidiano, “Ensaio sobre a Cegueira”- o filme- perde muito pouco em relação à obra escrita; além do inevitável problema que qualquer adaptação sofre, de poder desiludir a visão pessoal do leitor sobre o romance, apenas é de realçar como as descrições visuais de Fernando Meirelles são mais contidas que as descrições escritas de José Saramago. A destacar a opção de Meirelles pelo branco como cor dominante, por vezes mesmo a ocupar a tela por inteiro, sem deixar espaço a qualquer outra forma reconhecível, um comentário do realizador ao mundo de 2008, actualizando a estória de 1995, fazendo o publico sentir um pouco da doença-branca de que as personagens sofrem? A destacar ainda o trabalho de caracterização do espaço do manicómio abandonado, onde nada funciona como devia e onde a sujidade se vai acumulando em quantidades cada vez maiores; como ponto negativo a pontuação irónica que a banda sonora por vezes empresta a cenas que, noutro contexto seriam alvo de riso, mas neste filme poderiam adquirir uma carga dramática suplementar, se bem utilizadas.

Visualmente arrebatador, a obra de Fernando Meirelles não fica muito atrás do livro de José Saramago, sendo fidelíssimo ao material de origem sem nunca descurar o facto de ter de transportar uma narrativa pouco simples para uma linguagem completamente diferente. Dando uma vista de olhos pela imprensa internacional, as críticas negativas vão-se acumulando e é verdade que “Ensaio sobre a Cegueira” não é um filme fácil de assimilar, com sequências duras de seguir e imagens complicadas de processar, no entanto, é sempre de assinalar quando um filme, como este, é capaz de despertar processos cognitivos no espectador deixando-lhe espaço para chegar à sua interpretação, sem lhe impôr uma solução única.
* Texto publicado na edição de 25 de Novembro de 2008 do Jornal Universitário A Cabra