29 outubro 2008

Entre os Dedos (2008, Tiago Guedes e Frederico Serra)

Se nos ultimos dias se tem sentido mais frio na rua, quase que poderia dizer que se deve em parte a este filme. Não por rejeitar uma ligação afectiva ao espectador, há bastante por aqui para o estabelecer, mas pelo olhar frio que os realizadores têm da sociedade portuguesa, em particular da desgraça que lhe é transversal.

Mas comecemos pelo início. De acordo com o Cinecartaz, «Entre os Dedos
é a história de um conjunto de pessoas que agora se limitam a sobreviver dentro do destino que lhes coube. Mas enquanto uns desistem e deixam cair os braços, outros resistem, esbracejam e lutam, recusando-se a deixar-se conformar.Depois de uma derrocada numa obra, Paulo perde o emprego porque denunciou a situação. A sua relação com a mulher vai piorando dia após dia. Anabela, a irmã de Paulo, vive com o pai de ambos, que sofre de síndrome do Ultramar. Bela é enfermeira e o único conforto de um doente terminal.»

Passando por cima da tradição nacional de incluir na sinopse uma interpretação do filme que se está a promover, a primeira impressão que se tem é que vamos assistir a mais um filme-mosaico, tão na moda. Sim, é um filme-mosaico, mas feito com os meios à disposição dos portugueses. Se a associação com um produtor brasileiro contribuiu para que o desnível técnico da produção nacional não se sinta aqui (e que parece sentir-se cada vez menos, mesmo em filmes 100% portugueses), estamos perante um filme-mosaico mais limitado em termos de dispersão de personagens e estórias a contar.
Aqui, a estória principal gira à volta do casal Paulo e Lucia (magnifíca Isabel Abreu), com algumas breves espreitadelas para a vida do pai e irmã de Paulo e de um doente a receber cuidados paliativos da ultima, que é enfermeira.
A economia torna-se util no desenvolvimento da narrativa principal de Paulo e Lucia, mas seria ainda mais util eliminando a estória do doente em fase terminal (cujo nome não cheguei a apanhar), que acaba por atrapalhar mais do oferecer uma perspectiva suplementar sobre o sofrimento humano.

Voltemos às personagens e à sua extrema humanidade. Paulo é um recém-desempregado depois de ter sido despedido da obra onde trabalhava, é-nos dado a entender por denunciar condições de segurança não cumpridas. O enorme orgulho impede-o de aceitar ajuda de quem quer que seja, mesmo do pai, com quem tem uma relação complicada. Após o despedimento é ainda lançado para uma depressão que o leva a negligenciar o que seria mais importante: procurar novo emprego. Lucia é a mulher de Paulo, mãe heróica de dois de filhos que tenta o possível e o impossível por manter o orçamento familiar equilibrado. A juntar a este relacionamento problemático está o da irmã e pai de Paulo. Ele, ex-combatente da guerra colonial portuguesa, racista contido com uma filha mulata. O confronto entre ambos está latente até que o pai explode e chama a filha de “preta” enquanto ouve um hino de exaltação à Guerra em Angola.

Salta à vista a fotografia a preto e branco, transportando para o espectador a glacialidade da vida das personagens do ecrã. A realização da dupla Tiago Guedes e Frederico Serra também merece uma referência, sendo de evidenciar a característica claustrofóbica que é dada à própria casa de cada uma das personagens, como se o mundo desabasse, mesmo no local onde se poderia encontrar algum conforto. A utilização de uma banda sonora minimalista contribui também uma sensação de frio vinda do ecrã. Não há nada de bonito ou para relaxar neste “Entre os Dedos”. Tudo é dificil de aguentar, a dor está presente em cada fotograma. Na esteira de Alejandro Gonzalez Iñarritu, aqui é a miséria da existência portuguesa no início do século XXI que é dissecada num argumento de Rodrigo Guedes de Carvalho. Sem compromissos na forma como cada personagem é retratada e na forma como a cada situação é dada uma resolução sem o ser, um final em aberto, porque a vida continua e é preciso continuar em frente.

Pode não ser o melhor exemplo de cinema português para o grande público, o apelo comercial de uma obra destas é bastante reduzido, mas é um bom sinal para os tempos que aí vêm, mostrando como é possível fazer cinema em Portugal sem deixar qualquer pormenor técnico enfraquecer a qualidade da obra.

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